A
Lenda de La Befana Por Fernando Cozzi
Dizem
que, nas madrugadas de inverno, quando o céu parece um pergaminho frio e a
terra recolhe seus ruídos, uma velha de passos leves atravessa o mundo
carregando uma sacola de memórias. Os italianos a chamam de La Befana, mas eu,
que escuto o que o silêncio sussurra, prefiro chamá-la de a que varre
ausências. A lenda conta — e essa lenda existe antes de mim, antes de você,
antes mesmo de certas certezas — que três viajantes, guiados por uma estrela,
bateram à porta da velha. Procuravam o Menino recém-nascido, o que traria luz
aos homens. E La Befana, na pressa das tarefas, na poeira dos dias que nunca
dão trégua, disse não. Disse que não podia. Disse que ficaria para trás só por
um instante. Mas os instantes, às vezes, são eternidades disfarçadas. Quando o
arrependimento chegou tarde demais, ela partiu. Atravessou aldeias, campos,
vales de gelo. Levava consigo presentes simples, porque os simples sabem
oferecer o que importa: um pedaço de pão, um lenço, uma pequena vela para quem
tropeça no escuro. E desde então — assim diz a tradição que não se apaga — ela
visita as casas das crianças, deixando doces para as que foram bondosas, e
carvão para as que esqueceram de ser luz. Eu, porém, vejo outra coisa escondida
nessa história: La Befana não busca o Menino. Busca o tempo que perdeu. E quem
de nós já não fez o mesmo? Enquanto ela passa, varrendo as calçadas com sua
vassoura gasta, percebo que não é sujeira o que ela leva embora: são remorsos.
São promessas que não viramos. São palavras que não dissemos quando ainda
poderiam salvar alguém. A velha, dizem, é feia. Mas o que é a feiura senão um
espelho impiedoso do que não entendemos? A mim, ela parece apenas alguém que
aprendeu cedo demais que as oportunidades recusadas viram fantasmas — e que só
se libertam quando oferecemos algo ao outro. E por isso ela entrega presentes.
Não por obrigação. Mas para tentar, noite após noite, ofertar ao mundo o que não
conseguiu ofertar naquele dia perdido da estrela. La Befana existe. Vive na
tradição de séculos. E ainda assim se renova, cada vez que compreendemos que o
Natal não é sobre perfeição, mas sobre reparar o que ainda pode ser reparado.
Quando dezembro dobra sua última esquina, deixo um pouco de pão na janela. Não
por superstição — por respeito. Se a velha passar, que coma. Se não passar, que
o gesto permaneça. Porque toda lenda verdadeira — e La Befana é uma delas — é
apenas o modo que o tempo encontrou para nos lembrar que sempre existe um
caminho de volta, ainda que feito de neve, arrependimento e um punhado de luz.
Lenda faz parte do Folclore Europeu Italiano Adaptação para a versão sofista de
Rumi Fernando
Cozzi